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Imigração

Um processo

por Carlos Stumpo

Imigração: um processo.

A imigração não é uma mera mudança de endereço.

O imigrante é uma pessoa que passa por um longo processo de transformação.

Durante muitos anos, por observação, eu vi isso acontecer e cada pessoa, naturalmente, tem uma reação diferente, mas todas seguem mais ou menos a mesma sequência (na grande maioria).

Há pessoas que resistem mais, outras que resistem menos, mas o padrão de comportamento é geralmente esse.

E tudo isso se desenrola por fases.

A primeira fase do imigrante quando ele chega no país é a fase do encantamento.

Ele olha para o céu e pensa “nossa, o céu da Europa”, olha para a calçada eu diz "oh, a calçada da Europa"...

Os temperos têm um gosto diferente, apesar do produto existir também Brasil, é como se o gosto fosse diferente: melhor

É tudo diferente, tudo parece mais bonito, mais fácil, tolerável, tudo lindo.

É a fase do encantamento.

E essa fase perdura até o momento em que a pessoa percebe que aqui também existem coisas menos boas (como em todas as sociedades).

Aqui também há lixo, há poluição no céu e, afinal, aquele friozinho gostoso que sentimos, depois de três meses, todos os dias, começa a incomodar.

Aspectos práticos do dia a dia, que nunca demos importância passam a surgir e, de certa forma, causam algum desconforto.

Lembro-me de coisas simples e banais como, por exemplo, constatar que não é prática local haver um ralo no banheiro (casa de banho).

E constatei isso logo após ter jogado um balde d’água no chão, para lavá-lo.

A máquina de lavar roupa, quando há, ficar na cozinha, de baixo da pia …

... enfim.

Mas também começam a surgir questões mais comportamentais, de percepção mais fina que, se não formos capazes de reconhecer, podem fazer-nos enveredar por caminhos indesejados.

No Brasil normalmente relacionamo-nos com um determinado tipo de pessoas, seja por questões culturais, interesses comuns, classe social, etc. Até mesmo na rua, entre desconhecidos, somos influenciados e influenciamos os outros com a forma própria da nossa etnia.

Ao chegar aqui o imigrante pode não ter a percepção imediata, mas tudo é diferente. Apesar da língua ser parecida, a cultura, as regras sociais, os usos e os costumes são diferentes.

Em muitas vezes isso revela-se uma "grata surpresa" noutras, às vezes, reveste-se de algum impacto negativo. Em alguns casos, infelizmente, com alguma xenofobia.

Ao passar por essas coisas todas começa-se a observar o que há de menos bom no universo ao redor.

As pessoas também cospem no chão, xingam os outros, também há lixo na calçada, o trânsito é truculento.

Há gente má, gente que não presta, mas também há gente boa, gente em quem vale a pena investir (como e qualquer lugar do mundo).

E assim é inevitável o início do processo de comparações.

Processo que pode redundar nisso: "Pôxa, p'ra eu passar esse tipo de coisas aqui, então eu passo lá. Ao menos não me sinto menos só!"

E é o primeiro momento em que as pessoas sentem-se tentadas a regressar: desistir.

O primeiro risco de desistência é nesse momento porque o pensamento é "Se é para passar arrêgo aqui, então eu passo lá ... junto dos meus".

E a primeira encruzilhada que é colocada no caminho do imigrante faz a seguinte proposição: ficar ou voltar.

Cria-se o conceito de “o que eu penso” e “o que eles pensam”.

Surge a dicotomia do “nós e eles”, a divisão mental, sutil, na percepção das coisas bem como a desregulação da "balança interna" (aquela que avalia tudo pelo qual passamos).

A partir daí saímos do campo da isenção e a maior parte das avaliações (para não dizer quase todas) torna-se tendenciosa, vira um “jogo viciado” que tende a não terminar bem (na frustração e no fim de um sonho).

Mas há aquele que resiste, ultrapassa essa fase e passa para a fase seguinte.

Sai da fase do encantamento, entra na fase da constatação da realidade, ou da observação da realidade existente.

Mas, agora, a sensação é a mesma daquela de domingo à noite … de "acabaram-se as férias". O conto de fadas transforma-se na fria realidade (ou, a nossa percepção dela).

E então, para quem fica, inicia-se a fase da resistência.

Fica, não regressa: mas resiste. Insiste e, em regra geral, entra numa bolha chamada Brasil.

Faz comida brasileira, usa a língua portuguesa da forma brasileira, resiste com todas as forças “o jeito português de ser” e agrava ainda mais o processo de comparações.

“Na minha terra não é assim, aqui é tudo mais complicado, lá é melhor …".

Um dos fatores notáveis desta fase é a tendência do brasileiro (aqui em Portugal) dizer coisas como "o português tem um sotaque diferente".

Esquece-se que é exatamente ao contrário: nós estamos em Portugal; aqui em Portugal quem tem sotaque somos nós.

Ocorre o erro de paralaxe na visão das coisas.

Na fase da resistência é quando o imigrante luta, briga, resiste à realidade da cultural, da ordem, dos conceitos éticos, da forma da moral, que as vezes pode ser um bastante diferente (dependendo dos casos).

Nesta fase surgem muitos atritos. Atrito na comunicação com as pessoas, atrito nos serviços, nos atendimentos, no cafezinho, no autocarro (ônibus) ...

Geralmente o imigrante então passa a procurar círculos de brasileiros, pessoas cuja única empatia existente é o fato de serem brasileiros.

É um processo empático onde, a mera nacionalidade une a todos na mesma realidade (ou a percepção dela).

Eu próprio passei por isso.

Estou aqui há trinta anos e, nesse ínterim, relacionei-me com muita gente, muitos brasileiros com os quais, se fosse durante o tempo em que vivi no Brasil, provavelmente não me relacionaria.

Não estou a falar da classe social, de ser pobre ou ser rico. Apenas pessoas que têm perspectivas diferentes das minhas e que não têm nada a ver comigo.

Possuem interesses e valores diferentes dos meus, há pouco ou quase nada que nos ligue, mas estão aqui e são todos brasileiros: acabamos por ficar juntos.

Há ainda o imigrante que procura “eco sistemas” brasileiros.

Agarra-se a uma religião de matriz brasileira e vive por lá; frequenta apenas e tão somente as casas , vivem e convivem apenas com brasileiros.

Porque estão na bolha chamada Brasil, que é crítica em relação a Portugal e o valor empático que os une é, precisamente, a resistência.

A vida continua, vive-se a constatação da sua realidade, constata-se que a realidade é o país estrangeiro em que se vive, mas quer ficar e insiste em querer ser “brasileiro fora do Brasil”.

Muita gente ainda vive na bolha: ainda não se transformou.

Nessa fase também observa-se uma considerável taxa de desistência, porque no processo de “convívio resistente” geralmente surgem muitos atritos no dia a dia, há menos momentos de alegria, a infelicidade torna-se mais presente, não se atinge a satisfação plena ... e a vida fica chata.

E nessa fase muitos imigrantes voltam: regressam.

Contudo, a nova encruzilhada que é colocada à frente questiona a disposição do imigrante de “desistir de resistir” e, de uma forma figurada, “deixar Portugal entrar, naturalmente, em nossa circulação sanguínea”.

É a fase da aceitação.

Essa fase é , digamos assim, o ponto de virada. Porque depois dessa fase constata-se que a realidade da vida é essa que nos rodeia: estamos em outro país.

E nessa toada, a nova pergunta a fazer é: a nossa casa é definida pelo perímetro geográfico onde estamos? é na América do Sul? ou a nossa casa é aquela onde estamos e vivemos?

A partir dessas percepções somos capazes de constatar que nesse outro país que estamos a cultura é diferente, a forma de ser é diferente e, para podermos ser felizes aqui, é importante nos adequarmos a realidade local ao invés de resisti-la, o que nos impede de experimentá-la.

Para que isso seja possível precisamos acalmar o “guerreiro” que há dentro de nós, baixarmos os braços e pararmos de resistir.

Se formos capazes de o fazer, batemos no fundo do poço, na parte mais funda do nosso ser e esse momento revela-se como o fim de um ciclo: um renascimento.

E aqui inicia-se a transformação.

Sofremos a perda, o desenraizamento.

E, com as raízes despregadas da terra, ganhamos a oportunidade de voar, de conhecer (verdadeiramente) novos horizontes, apreciar as paisagens, provar as comidas, ouvir as histórias, as tradições, conhecer a cultura, as pessoas.

Percebemos que, realmente, tudo o que fizemos até agora, tudo que construímos e aprendemos serve, e servirá sempre, como bagagem, como estrutura …

Mas há muito, todo um mundo novo que reaprender.

Ao entrarmos nessa fase o risco de desistência é bem menor e é quando começamos a viver, verdadeiramente, como imigrantes.

O que acontece é a verdadeira transformação, quando deixa de haver o mind set que predominava no Brasil e surge o olhar para um novo mundo.

Não significa dizer com isso que desprezamos os nossos próprios valores, contudo reavaliamos algumas crenças (sobre tudo as limitantes).

Toda a informação que vamos recebendo, agora com o espírito aberto, dá-nos a oportunidade de rever muitos conceitos. Vamos agregando novas visões do mesmo mundo, novas percepções da mesma realidade, o que abre-nos novos horizontes, porque como dizia Albert Einstein, “A mente que se expande a uma nova ideia não volta ao seu tamanho original”.

O encantamento que se transforma em constatação da realidade, vira resistência e a “desistência da resistência”, e, finalmente, na verdadeira transformação.

E existem formas de atenuar o processo? torná-lo mais fácil?

Sim, existe. Mas isso é matéria para outro post.

Aguarde.

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